E agora vem a parte que para mim é mais interessante, pois levanta o véu das receitas mais apreciadas do Mundo Antigo, e tão nossas desconhecidas! Só precisamos "do avental e do forno"!
"É pois urgente que, como elemento de crítica, reconstituamos a cozinha antiga.
Nada mais fácil, tendo um avental, um forno e a Arte Culinária de Apício.
Eu não possuo, nem conheço este tratado venerável. Mas, através de ténues e modestas leituras, tendo recolhido algumas receitas, suficientes para aqueles espíritos curiosos que queiram investigar sem cansaço, sem extensos estudos, esta feição do génio antigo.
Marcial ou Aulo Gélio, não recordo qual, assegura que um bom jantar pode constar de um peixe, um bolo ou pudim e uma garrafa de vinho. Era este um jantar muito usual na Grécia, e depois em Roma, para a gente azafamada ou sóbria, que queria comer rapidamente, sem despesa e sem pesadume. Equivale ao jantar moderno, em Paris ou Londres, engolido à pressa antes do teatro, mesmo no mundo do luxo, e que se compõe de uma sopa, de uma costeleta, de uma fruta e meia garrafa de Bordéus.
Pois eu sei como se cozinhava este jantar em Atenas ou Roma, aí pelos tempos de Augusto e ainda mesmo sob os Antoninos. O peixe, por exemplo, pode ser uma taínha. E aqui está como ela se prepara, ó estudiosos! Tomai essa taínha. Escamai e esvaziai. Preparai uma massa bem batida, com queijo (que hoje pode ser parmesão), azeite, gema de ovo, salsa e ervas fragrantes, e recheai com ela a vossa taínha. Untai-a então de azeite e salpicai-a de sal. Em seguida assai-a num lume bem forte. Logo depois de bem assada e alourada, humedecei-a com vinagre superfino. Servi, e louvai Neptuno, Deus dos peixes.
O outro Prato, pois que se trata de um festim ligeiro, pode ser um queque ou pudim feito pela receita do ilustre mestre Crisipo. Tomai duas ou três alfaces, bem repolhudas. Lavai e enxugai. Deitai vinho dentro de um largo almofariz, e pisai, mortificai nele as folhas de alface. Passai por um ralo para que todo o líquido se escoe; e à alface assim amachucada no vinho, juntai farinha de trigo, uma pouca de manteiga e pimenta. Pisai de novo, até obterdes uma massa firme. Dai a esta massa a forma de um bolo chato e redondo. Colocai-o na frigideira com azeite, e frigi num lume vivo. Toda a Antiguidade considerou este bolo uma delícia e chamava-se "catillus ornatus". Não sei se gostareis. Era um prato dilecto de Pompeu.
Podemos depois findar, se quiserdes, pela famosa "empada de rosas". Era um acepipe muito usado em todas as festas do culto de Vénus. Para o realizar, descei ao jardim, colhei as rosas mais largas e mais cheirosas. Pisai-as no almofariz. Juntai miolos de galinha, de pombo e de perdiz, muito bem cozidos, depois de os terdes desembaraçado das mais pequeninas fibras. Acrescentai ainda duas gemas de ovos, um fio de azeite puro, pimenta e vinho velho, de Malvasia. Depois de bem mexido tudo, até conseguir uma massa leve e fina, deitai numa caçarola nova de barro e colocai sobre um fogo lento e contínuo. Logo que a superfície se aloure, servi. Por toda a sala se espalhará um aroma de rosa, e a vossa alma bendirá Apício Célio, criador desta maravilha.
E já que tivémos rosas em empada, por que não beberíamos o famoso vinho rosado? As receitas para o fazer diferem, mas a mais simples e rápida é a de Pausânias. Desfolhai um ramo de rosas, guardai-as durante um dia e deitai-as dentro de dois ou três litros de vinho velho (de Bordéus, hoje). Ao fim de três ou quatro semanas, juntai um arrátel de mel. E se pensais que o gosto e o saber de Heliogábalo podem ser seguidos com confiança, acrescentai ao vinho, horas antes de o beberdes, um punhado de pinhões esmagados, como fazia esse esplêndido e imperial estróina.
Aí está, pois, um muito fácil e acessível jantar greco-latino"...
E a prosa queiroziana prossegue dando-nos conta do ambiente ou cenário em que o festim se desenrola, para que não falhe nenhum pormenor nesta refeição. Fala ainda das Simposíacas de Plutarco, "um tratado superior do regime intelectual a seguir durante um banquete".
São só mais duas páginas, mas não as reescrevo por dois motivos:
- não vos quero maçar mais;
- não quero ofender os direitos de autor.
Se alguma leitora ou leitor estiverem interessados nesta última parte, é só pedirem para o e-mail do blog, que eu enviarei com muito gosto para o vosso endereço electrónico.
Notas: Um arrátel corresponde a 459 gramas.
No texto, quando Eça se refere a lume intenso, julgo que se trata de forno.
A avaliar pela minha experiência com a Tigelada à moda da Beira Baixa, a caçarola de barro para a Empada de Rosas, devia ser prèviamente aquecida no forno, e só depois seria introduzida a massa.
Isto para o caso de haver por aí algum corajoso, curioso e douto, como diria Eça de Queiroz, que queira experimentar, (he, he) !!!
Desejo-vos uma boa semana, com tudo a correr pelo melhor.
Beijinhos da
Bombom = Tia Fátima = Avó Fátima
"É pois urgente que, como elemento de crítica, reconstituamos a cozinha antiga.
Nada mais fácil, tendo um avental, um forno e a Arte Culinária de Apício.
Eu não possuo, nem conheço este tratado venerável. Mas, através de ténues e modestas leituras, tendo recolhido algumas receitas, suficientes para aqueles espíritos curiosos que queiram investigar sem cansaço, sem extensos estudos, esta feição do génio antigo.
Marcial ou Aulo Gélio, não recordo qual, assegura que um bom jantar pode constar de um peixe, um bolo ou pudim e uma garrafa de vinho. Era este um jantar muito usual na Grécia, e depois em Roma, para a gente azafamada ou sóbria, que queria comer rapidamente, sem despesa e sem pesadume. Equivale ao jantar moderno, em Paris ou Londres, engolido à pressa antes do teatro, mesmo no mundo do luxo, e que se compõe de uma sopa, de uma costeleta, de uma fruta e meia garrafa de Bordéus.
Pois eu sei como se cozinhava este jantar em Atenas ou Roma, aí pelos tempos de Augusto e ainda mesmo sob os Antoninos. O peixe, por exemplo, pode ser uma taínha. E aqui está como ela se prepara, ó estudiosos! Tomai essa taínha. Escamai e esvaziai. Preparai uma massa bem batida, com queijo (que hoje pode ser parmesão), azeite, gema de ovo, salsa e ervas fragrantes, e recheai com ela a vossa taínha. Untai-a então de azeite e salpicai-a de sal. Em seguida assai-a num lume bem forte. Logo depois de bem assada e alourada, humedecei-a com vinagre superfino. Servi, e louvai Neptuno, Deus dos peixes.
O outro Prato, pois que se trata de um festim ligeiro, pode ser um queque ou pudim feito pela receita do ilustre mestre Crisipo. Tomai duas ou três alfaces, bem repolhudas. Lavai e enxugai. Deitai vinho dentro de um largo almofariz, e pisai, mortificai nele as folhas de alface. Passai por um ralo para que todo o líquido se escoe; e à alface assim amachucada no vinho, juntai farinha de trigo, uma pouca de manteiga e pimenta. Pisai de novo, até obterdes uma massa firme. Dai a esta massa a forma de um bolo chato e redondo. Colocai-o na frigideira com azeite, e frigi num lume vivo. Toda a Antiguidade considerou este bolo uma delícia e chamava-se "catillus ornatus". Não sei se gostareis. Era um prato dilecto de Pompeu.
Podemos depois findar, se quiserdes, pela famosa "empada de rosas". Era um acepipe muito usado em todas as festas do culto de Vénus. Para o realizar, descei ao jardim, colhei as rosas mais largas e mais cheirosas. Pisai-as no almofariz. Juntai miolos de galinha, de pombo e de perdiz, muito bem cozidos, depois de os terdes desembaraçado das mais pequeninas fibras. Acrescentai ainda duas gemas de ovos, um fio de azeite puro, pimenta e vinho velho, de Malvasia. Depois de bem mexido tudo, até conseguir uma massa leve e fina, deitai numa caçarola nova de barro e colocai sobre um fogo lento e contínuo. Logo que a superfície se aloure, servi. Por toda a sala se espalhará um aroma de rosa, e a vossa alma bendirá Apício Célio, criador desta maravilha.
E já que tivémos rosas em empada, por que não beberíamos o famoso vinho rosado? As receitas para o fazer diferem, mas a mais simples e rápida é a de Pausânias. Desfolhai um ramo de rosas, guardai-as durante um dia e deitai-as dentro de dois ou três litros de vinho velho (de Bordéus, hoje). Ao fim de três ou quatro semanas, juntai um arrátel de mel. E se pensais que o gosto e o saber de Heliogábalo podem ser seguidos com confiança, acrescentai ao vinho, horas antes de o beberdes, um punhado de pinhões esmagados, como fazia esse esplêndido e imperial estróina.
Aí está, pois, um muito fácil e acessível jantar greco-latino"...
E a prosa queiroziana prossegue dando-nos conta do ambiente ou cenário em que o festim se desenrola, para que não falhe nenhum pormenor nesta refeição. Fala ainda das Simposíacas de Plutarco, "um tratado superior do regime intelectual a seguir durante um banquete".
São só mais duas páginas, mas não as reescrevo por dois motivos:
- não vos quero maçar mais;
- não quero ofender os direitos de autor.
Se alguma leitora ou leitor estiverem interessados nesta última parte, é só pedirem para o e-mail do blog, que eu enviarei com muito gosto para o vosso endereço electrónico.
Notas: Um arrátel corresponde a 459 gramas.
No texto, quando Eça se refere a lume intenso, julgo que se trata de forno.
A avaliar pela minha experiência com a Tigelada à moda da Beira Baixa, a caçarola de barro para a Empada de Rosas, devia ser prèviamente aquecida no forno, e só depois seria introduzida a massa.
Isto para o caso de haver por aí algum corajoso, curioso e douto, como diria Eça de Queiroz, que queira experimentar, (he, he) !!!
Desejo-vos uma boa semana, com tudo a correr pelo melhor.
Beijinhos da
Bombom = Tia Fátima = Avó Fátima
- domingo, outubro 03, 2010
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